Devoção de advogado
Goffredo Telles Junior Advogado; professor emérito e titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Advogado sempre fui. Sou advogado por destinação genética. Mas não só por isto: sou advogado por amor. Tirante a mais sublime das profissões – que é a de Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco –, não conheço profissão tão fascinante como a de advogado.
Devo dizer que o estudo do Direito me deslumbrou desde o primeiro dia, depois da aprovação no Exame Vestibular – desde aquela primeira noite, em que permaneci acordado, a ler, por indicação de meu pai, Le Droit Pur , obra célebre de Edmond Picard. Lembro-me de que, quando entrei, bem cedo, na minha Escola, com a vibração comum dos calouros, eu levava o sentimento de já ser um pouco responsável pela ordem jurídica no meu país.
Quando completei o curso de Direito e me promovi a bacharel, logo entendi que meu diploma era uma valiosa chave para as portas do mundo. Chave , é claro, para as profissões específicas da área jurídica, mas, também, chave utilíssima para outras inúmeras profissões. E, ainda, é chave para o comportamento nas ocorrências da vida.
Logo percebi que o bacharel em Direito é um cientista da sociabilidade humana. Sim, um cientista da Disciplina da Convivência .
Preciosa ciência é a Ciência dessa Disciplina! Preciosa, sem dúvida, porque, para os seres humanos, como bem sabemos, viver é conviver .
Quem fizer, com seriedade, o curso de uma Faculdade de Direito, e obtiver o conhecimento científico da Disciplina da Convivência , está pronto para a vida. Está superiormente formado para enfrentar as exigências do quotidiano.
O diplomado em Curso de Direito sabe o que é permitido e o que é proibido pelas leis. Possui, pois, o conhecimento básico de como se deve conduzir nos encontros e desencontros, nos acertos e desacertos, de que é feita a trama da comunidade humana.
Seu diploma de bacharel em Direito é o título valiosíssimo de quem estudou as formas legais e ilegais dos relacionamentos humanos, e se informou sobre os caminhos e descaminhos do comportamento.
Por força dessa mesma razão, abre chaga no seio da sociedade o bacharel corrupto. Seja advogado, juiz, promotor de justiça, delegado de polícia, o bacharel corrupto é uma triste figura. É traidor de seu diploma e da categoria profissional a que pertence. É traidor da ordem instituída – dessa ordem de que ele é esteio e intérprete. O bacharel corrupto é traidor da Disciplina da Convivência , de que ele é natural sentinela e guardião.
A mim, desde os tempos de estudante, desde os inícios de minha advocacia, o Direito sempre se apresentou como a segurança da liberdade humana e do império da justiça. As leis sempre pareceram, a meus olhos, como extraordinários acervos de respostas , dadas pela experiência dos séculos e pela prudência dos legisladores, às perguntas que permanentemente fazemos, no correr simples de nossas vidas quotidianas. Como casar? Como comprar um terreno? Como cobrar o que nos é devido? Como saldar um compromisso? Quem é herdeiro? Que pena imputar ao delinquente? O Direito responde.
O que logo entendi foi que as leis nos esclarecem, nos instruem, nos conduzem, nos aconselham. Se queremos chegar a um determinado objetivo, o Direito nos indica o caminho.
Verifiquei que o que caracteriza o Direito, antes de mais nada, é sua natureza informativa , instrutiva, conselheira , pedagógica .
Convenci-me, sem demora, de que o Direito é feito para servir o homem, e não para tiranizá-lo. É feito para dar-lhe segurança , e não para oprimi-lo. Senti que o Direito é amigo do homem.
Há quem sustente – eu bem o sabia – que o Direito é uma armação coercitiva.
A meus olhos, porém, o Direito legítimo, expresso em suas leis, longe de ser um instrumento de opressão, sempre me pareceu uma estrutura solidária com o ser humano.
Tenho horror à opressão. Tenho horror à coação. Eu teria abandonado o estudo do Direito se o Direito fosse coativo. A vida não valeria a pena, se viver conforme o Direito fosse viver coagido.
Desde cedo percebi que a coação, na área do Direito, não é exercida pelas próprias normas jurídicas, mas por quem é lesado , quando as normas jurídicas são violadas. O lesado é que exerce a coação, não a norma jurídica.
Jamais defini a norma jurídica por meio da coação. Para mim, até os dias de hoje, a norma se define:imperativo autorizante .
Nessa definição, o adjetivo autorizante , como bem sabem os estudantes da minha Faculdade, possui sentido estrito e peculiar. A norma jurídica é autorizante porque autoriza o lesado pela violação dela a empregar, pelos meios competentes, as sanções da lei , contra o violador.
Lembro-me bem de que, no meu tempo de estudante, muito me preocupou a distinção entre a sançãoe a coação , na ordem jurídica. Só me tranquilizei quando entendi, com meridiana clareza, que asanção jurídica não se confunde com a coação .
Verifiquei que as sanções jurídicas são as providências prescritas pelas normas jurídicas, para os casos de violação dessas normas. De certa maneira, fazem o papel de receitas de remédios de Direito , formuladas preventivamente e conservadas por prudência. Poderão ser aviadas, como poderão não o ser. Mas elas sempre ali se encontram, devidamente preceituadas, para serem usadas ou não, quando o Direito é ferido, ou seja, quando a norma jurídica é violada e um dano é causado a alguém; e quando o lesado, num ato de vontade, providenciar a aplicação delas. Importante é acentuar que, aplicadas ou não, as sanções ali estão prescritas, no próprio texto escrito das normas jurídicas.
A coação – logo aprendi – é outra coisa. A coação não é uma providência meramente preconizada, uma “salvaguarda” prevista no texto escrito da norma. Ela não é sanção. A coação é a aplicação da sanção. Coação é ação . É execução de um ato. É uma pressão efetiva, exercida de fato por uma pessoa sobre outra pessoa, com o fim de constranger esta outra a fazer o que ela não quer fazer, ou a não fazer o que ela quer. Em suma, a coação é o ato de compelir .
Ainda estudante, compreendi que a coação não é exercida , nem o pode ser, pela própria norma jurídica, pela própria lei. Considerada apenas no que ela é, mera fórmula verbal, simples enunciado de um modelo de comportamento, a norma jurídica não é coativa . Como poderia a norma sair do papel em que está escrita, erguer-se, pegar alguém pelo braço, forçar alguém a fazer isto ou aquilo?
A entidade que exerce a coação (que a requer e providencia a aplicação da sanção) é a pessoa que, eventualmente, tenha sido prejudicada pela violação da norma.
Mesmo nos casos de crime, a missão da lei é a de ser norma autorizante . Nesses casos, a vítima não é a única atingida pelo violador. A própria sociedade também se sente lesada, também se sente agredida. Em conseqüência, a sociedade também fica autorizada a promover, por meio da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, a aplicação das sanções competentes, que a própria lei estabelece. A sociedade, pois, é que, sentindo-se ferida, exerce a coação.
Hoje, já não mais frequento o Fórum, e minha banca de advogado parece arvorar-se em consultório de amigos. Devo confessar que ao relembrar o passado e a obstinação de minhas contendas processuais, sou invadido, às vezes, por um mundo de lembranças, que uma névoa diáfana de vaga ansiedade envolve e inquieta.
Que terei eu sempre almejado, em minhas pelejas judiciais: a justiça ou a vitória ?
Reflito, reexamino, reconstituo. Terei eu sempre andado em busca da justiça ? Torturo a minha consciência. Ora me digo “ sim “, ora me digo “ não “. Invoco razões e contra-razões. Sofro com esse debate, mas nele meu espírito insiste, parece comprazer-se.
Minhas petições em juízo terminavam, como era natural, com a consagrada fórmula: “ Por ser de justiça, espera e pede deferimento “.
Hoje, o que me pergunto, a medo, é o seguinte: Estava eu sempre convencido de que o deferimento, por mim requerido em minhas petições, seria verdadeiramente um ato de justiça ?
É claro que tais interrogações e dúvidas nunca foram tropeço na minha impávida advocacia contenciosa. Mas bem me lembro de vacilações, na aurora de minha atividade de professor , a respeito da própria definição da justiça.
Eu dizia a meus alunos: “ Justiça não é fazer justiça “. Não é o fazer dessa expressão. Isolemos a justiça do verbo que a acompanha. Deixemo-la sozinha. Que é, afinal, a justiça em si mesma ?
Lembro-me de minhas cismas sobre a definição de Ulpiano: “ Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi “. E sobre a definição de Cícero: “ Justitia est habitus animi, communi utilitate conservata, suam cuique tribuens dignitatem “.
Eu me perguntava: A justiça é vontade ? É “constante e perpétua vontade” , a que se referia Ulpiano? A justiça é hábito ? “O hábito da alma”, a que se referia Cícero?
A mim me parecia, nos alvores de minhas preocupações na área da Filosofia Jurídica, que a justiça, considerada em si mesma, não era vontade , nem hábito . Ela era, isto sim, a equivalência entre algodado e algo retribuído .
Essa idéia de equivalência entre o dado e o retribuído levava-me à consideração de que a justiça implicava, forçosamente, uma relação de um com outro . Só havia justiça – dizia eu – quando alguémdeu ou fez algo, e outrem retribuiu o algo que lhe foi dado ou feito.
Eu me lembrava de que, na Ética a Nicômaco , Aristóteles já insistia nessa relação de um com outro , como caráter próprio da justiça, e de que Santo Thomaz de Aquino, fundado em Aristóteles, escreveu na Summa Theologica : “ É próprio da justiça ordenar o homem naquilo que é relativo a outro “.
Logo me conscientizei de que a justiça não está apenas na equivalência . Embora soubesse que não há justiça sem equivalência , eu percebi que a justiça está sempre num ato , numa ação , numa atitude . Está sempre num ato de dar ou de fazer . Está sempre num ato de dar ou de fazer algo equivalente ao que foi dado ou feito. A justiça está no ato de retribuir o equivalente ao que foi recebido. Tem, pois, o referido caráter de um relacionamento de um com outro.
Eu estava bem enganado, nos primórdios de minhas indagações sobre a essência da justiça, quando eu me dizia que a justiça não era fazer justiça . A verdade – como depois descobri – era que a justiça consiste, precisamente, num fazer . Impossível isolar a justiça da ação que a acompanha. Impossível deixá-la sozinha, defini-la sem o ato que a constitui.
Hoje, defino a justiça nos seguintes termos: retribuição equivalente ao que foi dado ou feito .
Pois bem, a pergunta insidiosa, que dormita e às vezes desperta no fundo do pensamento, é sobre se aquela obstinação, aquela pertinácia dos advogados, deve sempre conciliar-se com a prática da equivalência , que define a justiça.
Para nós, advogados, que significa pedir justiça ?
Quando o bacharel que eu fui chegou a ser o que chamam de jurista , a experiência da vida e a meditação sobre a realidade me demonstraram que pedir justiça ao juiz é pedir que o juiz declare a vontade da lei , relativamente ao caso específico dos autos.
Essa declaração (que é uma sentença ), requerida ao juiz, é, muitas vezes, obra delicada, produto de uma ciência sutil, que consiste na ciência da interpretação . Esta ciência se funda numa lógica que não é somente a eterna lógica do racional , mas é, também, a lógica especial dos juristas, ou seja, alógica do razoável .
Para o jurista, a lei não é uma proposição solta; não é, apenas, o que se lê em seu texto. Ela é, também, aquilo que ela pretende , como participante de uma ordenação geral.
O jurista sabe que a lei tem letra e tem espírito . O velho advogado sente que a lei tem corpo e tem alma . A verdade é que a lei, para o jurista – para o advogado arguto e para o juiz sagaz –, não se esgota em sua letra . A lei se acha, também, em sua intenção .
O juiz, é claro, não pode deixar de aplicar a lei, nos casos para os quais ela foi feita. Deve, porém, saber interpretá-la com sabedoria , para aplicá-la adequadamente, isto é, para aplicá-la com o espírito – o sentido – que ela, em cada caso concreto, precisa ter para alcançar os objetivos que determinaram sua elaboração.
Na Filosofia do Direito , Miguel Reale escreveu: “ uma norma é a sua interpretação ” (Parte II, Tít. X, Cap. XXXVIII, nº 214, da 5ª ed.). E Recasens Siches, na sua Nova filosofia da interpretação do direito, sustentou que, na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica , mas uma justa e humana solução (Cap. III).
A experiência demonstra que, muitas vezes, os bons juízes conseguem melhorar, por meio de uma inteligente interpretação, a qualidade de más leis. Já houve quem dissesse que não haveria motivo de temer as más leis, se elas fossem sempre aplicadas competentemente. Em regra – acredito eu –, a sábia aplicação da lei é capaz de dar solução razoável ao desafio de quaisquer casos concretos, até mesmo dos casos mais melindrosos.
É verdade que, atualmente, as leis andam em onda de descrédito. Para setores consideráveis da população e da mídia, o que só importa é a justiça : a justiça com lei ou contra a lei . Aliás, isto faz lembrar a exclamação de Getúlio Vargas: “ A lei? Ora, a lei! “. Sim, para grande parte do povo e para muitos locutores de rádio e televisão, a lei, a vontade da lei, vêm sempre ligadas às desgraças da opressão e da iniquidade.
A lei se apresenta aos olhos de multidões como norma inflexível, indiferente ao que é “ o seu de cada um “; indiferente à realidade vivida de cada pessoa. O povo pensa: Como pode a lei, feita lá em cima pelos poderosos, ser meio do que é justo para nós, da plebe desfavorecida aqui embaixo?
Não é de espantar que o povo leigo – e mesmo alguns espíritos ilustres, condoídos com as misérias reinantes e inspirados por sentimentos de caridade –, o povo meio perdido e abandonado, dentro de um capitalismo insensível, se insurja contra certos arestos, e exclame: “ Abaixo as leis! Queremos justiça! “.
Na semana passada, ouvi um conhecido radialista blaterar contra decisões do Tribunal, e concluir com estas palavras: “O que agora nos interessa não são as leis. O que agora nos interessa é somente a justiça”. Outro locutor, âncora da televisão, comentando uma decisão judicial, tomou um certo ar de sábio, e disse: “Decisão conforme a lei esta, mas será justa?”. Sempre o mesmo questionamento, sempre a mesma controvérsia entre o justo legal e o justo verdadeiro .
Até juízes! É verdade! Até alguns eminentes juízes, que chamaram a si próprios juízes orgânicos (?), proclamaram: “ O compromisso do juiz é com a justiça, não com a lei !”. Exclamaram: Quando a lei, aos olhos do juiz, parecer injusta, “ dane-se a lei !” ( Jornal da Tarde , de 24/10/1990).
Péssimo exemplo deram esses juízes. Péssimo, sem dúvida, apesar de seu amor à justiça. Não terão eles percebido que a sentença proferida deliberadamente contra legem é ato ilícito? Que é violação que pode acarretar a responsabilidade do próprio juiz, por danos causados voluntariamente? Creio que o autor de uma tal sentença contra legem pode passar, eventualmente, de juiz a réu, em ação de reparação de danos.
Quando os juízes declaram que não cumprem as leis, quem as cumprirá?
Que heresia é essa? Que heresia é a de querer fazer justiça sem lei ? Fazer justiça contra a lei ? Lamentável heresia, negação do Estado de Direito, caminho direto para a anarquia ou para o despotismo, em que a devoção dos advogados de nosso país não incidirá jamais.
Não, não é possível aceitar a leviandade dessa tese insensata. Não é possível concordar com a entrega do poder de decidir sobre o que é o seu de cada um ao arbítrio de quem quer que seja.
A lei, só ela, a lei elaborada segundo os cânones do processo legislativo , nas Câmaras do Poder Competente, a lei sabiamente interpretada, é que constitui o critério, a baliza, a regra do justo – do justo possível , do justo dos homens . Se a lei não é justa, substitua-se por outra. Se uma decisão judicial não é correta, recorra-se para obter nova decisão. Mas o que todos nós queremos, quando somos lesados em nossos direitos, é poder nos abraçar às leis, para granjear o que for de justiça.
Muito verdadeira sempre me pareceu a célebre frase de Lacordaire: Quando a desordem impera, “ a liberdade escraviza, a lei é que liberta “.
No decurso de minha própria vida, o espetáculo dos sofrimentos causados pelo arbítrio de vários governos autoritários – prisões, torturas, assassinatos, banimentos, cassações –, toda espécie de perseguições ilegais, tudo isto locupletou meu espírito de horror pelos regimes de força, em que a justiça é simples manifestação da vontade discricionária de alguém.
A justiça, de fato, é o que soberanamente interessa. Mas, sem lei, em que se há de apoiar a justiça? Sem lei, há de ela decorrer, acaso, do suspeito critério pessoal , da vontade solta de quem a pronuncia?
Ao fim destas linhas, quero confessar que estou persuadido de que a verdadeira compreensão das leis, a criteriosa interpretação delas, a sua aplicação prudente ao caso concreto não dependem de muita erudição . Mais dependem, creio eu, do que os velhos chamam de sabedoria , isto é, daquele patrimônio da consciência, adquirido em segredo, no lento fluir da existência: “ Not knowledge, but wisdom “, eis o lema. Menos ciência , mais sabedoria – aquela “ sabedoria profunda e silenciosa “, de que fala meu irmão Ignácio ( Páginas de uma vida , Parte I, I).
Com a lógica do razoável e com essa íntima sabedoria , a devoção dos advogados e dos juízes fará a justiça que “ excede a justiça dos escribas e dos fariseus “, a que se referiu Jesus, no Sermão da Montanha .
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