sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O POETA DO ROCK - LOU REED

Julho/2010

O Poeta do Rock - Lou Reed


No universo da canção, não foi o jazz nem o blues que elevou as letras ao estado da arte. ''Atravessar o Fogo'', livro com versos de Lou Reed, traz alguns momentos de destaque da fascinante história de como a música pop se transformou em poesia
por Arthur Dapieve

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Lou Reed com um exemplar de um livro de fotografias de sua autoria, lançado em 2003. Suas letras são cheias de referências literárias - See more at: http://bravonline.abril.com.br/materia/poeta-rock-lou-reed#sthash.vD0zxQCX.dpuf

A história da transformação da letra num item tão importante quanto a música na canção popular tem um herói insuspeitado. Nos Estados Unidos do século 20, de onde muitos gêneros foram exportados para o resto do mundo, o blues chegou a intercambiar versos entre uma composição e outra, pois o essencial era o sentimento. Seu afilhado jazz quase sempre prescindiu das palavras e, quando as criou ou as foi buscar no cancioneiro popular, usou-as mais como outro suporte para a sonoridade geral do que como elemento em si. No caso do cancioneiro, nem a presença de um requintado Cole Porter, por exemplo, conseguiu de imediato destacar a dimensão intelectual - literária - do trabalho de se pôr certas sílabas em determinadas ordens. Coube, quem diria, ao bastardo rock transformar a letra numa arte independente, autônoma, digna de estudo e apreciação em si mesma.

O nome central dessa revolução foi Bob Dylan. Desde então, vários jovens letristas, não necessariamente seus discípulos estéticos, reafirmaram que havia literatura, alta literatura, aliás, a ser perseguida por entre três ou quatro acordes de guitarra. Um dos mais importantes poetas "libertados" por Dylan foi Lou Reed. Às vésperas de seu retorno ao Brasil - não como performer de rock num show incendiário e sim como participante da oitava Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, a se realizar no começo de agosto - Reed tem 310 letras lançadas em livro no país. Atravessar o Fogo, editado pela Companhia das Letras, em boa tradução em versos livres e brancos de Christian Schwartz e Caetano W. Galindo, ajuda a entender não apenas por que Reed é Reed mas por que a letra virou um fetiche, uma arte à parte dentro do cancioneiro ocidental.

No clássico livro Rock, o Grito e o Mito, publicado pela Vozes em 1973, reeditado em 1981 e hoje infelizmente fora de catálogo, o jornalista, crítico e tradutor brasileiro Roberto Muggiati escreveu: "O rock nasceu de um grito, o primeiro grito do escravo negro ao pisar em sua nova terra, a América." A partir daí, Muggiati desenvolveu com brilho a tese de que o rock foi uma espécie de grito primal represado por séculos de opressão, grito que restituiu a voz verdadeira ao homem. Se, em si, a terapia do grito primal de Arthur Janov resultou no constrangimento musical que é a obra de Yoko Ono, a metáfora ainda se aplica à perfeição. O gênero mulato surgido do affair entre o blues negro e o country branco rompeu os grilhões que prendiam a letra à melodia, à harmonia, ao ritmo. Ela pôde, enfim, ser lida em silêncio. Como poesia. Isso ajudou a constituir uma cultura pop a partir da década de 1960.

Logo, o bardo fanho americano, ano que vem setentão, assinalou um momento chave na história da arte, ao estabelecer o antes - o rock'n'roll despreocupado - e o depois - os letristas que se valeram de referências literárias, seus "filhos". Ao mesmo tempo, Dylan forneceu o grande parâmetro ao qual uma nova sensibilidade pôde se contrapor e ser compreendida. Expressada pela turma da fragmentação, essa nova sensibilidade quebra a linearidade da canção pop tradicional - no Brasil bem representada tanto por um Caetano Veloso quanto por um Renato Russo - como num espelho partido em múltiplas personalidades, mídias e redes sociais na internet.

Garotas, garotas, garotas

Nos primórdios, o rock tinha pouco cérebro e muito coração e sexo

O rock não teria tido o mesmo impacto sociocultural entre os jovens da segunda metade da década de 1950 e da primeira metade da década de 1960 se já tivesse nascido sob o signo da pretensão poética. Se os filhos ficavam excitados e os pais, amedrontados, era porque Elvis Presley sacudia a pélvis daquela lasciva maneira africana, Little Richard urrava "A-wop bop-a loo-bop, a-wop bam-boom! Tutti Frutti, al-rudy" como se fosse uma bateria desenfreada, e Chuck Berry louvava o rock'n'roll acima do jazz, das sinfonias, do country, do tango, do mambo. Como antes acontecera com o jazz e depois aconteceria com o funk e o rap, o racismo americano se manifestaria na forma de uma cruzada moral, de repulsa ao sexo.

"Muitos pais imaginam suas filhas, que saem para os dates - até então considerados encontros inconsequentes de namoradinhos - sendo violadas pelos namorados no banco traseiro de um Cadillac rabo-de-peixe enquanto o rádio toca uma canção de rock a todo volume", ilustra Muggiati em Rock, o Grito e o Mito. Na reprimidíssima década de 1950, não era necessário ser sexualmente explícito para suscitar a antevisão de prazeres proibidos. A combinação entre carrões envenenados e romances infelizes aparecia, por exemplo, em Maybellene, de Chuck Berry, cuja refrão dizia: "Maybellene, por que você não pode ser fiel? Você voltou a fazer as coisas que costumava fazer." Essas coisas, à época, não precisavam ser ditas para serem censuráveis. A batida frenética dizia tudo. O meio era a mensagem.

A imagem de rebeldia associada ao rock em filmes como Sementes de Violência (1955) ou No Balanço das Horas (1956) tornou-se tão forte que resistia ao evidente bom-mocismo de Bill Haley e Seus Cometas, presentes em ambos. As canções entoadas por Elvis também não eram especialmente selvagens. O que perturbava a ordem era a boa aparência, o rebolado, a voz de negro num branco. As letras, portanto, não iam além de garotas, garotas, garotas. Isso fez alguns observadores confundirem o rock com outros modismos musicais que, em décadas anteriores, haviam cutucado os hormônios da América branca e, de carona em sua poderosa indústria cultural, os hormônios de todo o Ocidente cristão. Quando Elvis foi enquadrado no serviço militar, então, o bicho parecia domado.

Nem mesmo ao final da primeira fase dos Beatles, com o já musicalmente brilhante álbum Revolver (1966), as letras possuíam a capacidade de funcionar sem a companhia da música. Qualidade que conquistariam conforme, "desafiados" por seu ídolo Dylan, John Lennon e Paul McCartney se dedicassem a torná-las mais significativas, casos de She's Leaving Home ou Blackbird. O repertório inicial dos Fab Four fazia cândidas declarações de amor, externando o desejo de pegar na mão na menina ou, no máximo da ousadia, se tornar o homem dela. Fosse como fosse, o rock'n'roll era sobre coração e sexo, não cérebro. Até hoje há compositores bons na pregação de que a música deve ser, antes de tudo, diversão. Certas bandas de hard rock ou heavy metal, como o AC/DC, eternizam em poucas linhas o sentimento de que a vida é curta, e é preciso vivê-la rapidamente. Parafraseando Lobão, os livros na estante - com antologias de letras de canções - não teriam tanta importância.

Política, religião, morte e arte

Bob Dylan mostrou que a música pop poderia falar de qualquer assunto

Em seu primeiro filme como diretor, Ricardo III - Um Ensaio (1996), o ator Al Pacino a certa altura conjecturava se Shakespeare já não havia pensado tudo o que o homem poderia pensar. Em relação a Bob Dylan o sentimento é mais ou menos o mesmo. Abrir ao acaso o calhamaço que é Lyrics 1962-2001, nunca editado no Brasil, se assemelha a jogar I Ching. A poesia de Dylan funciona tanto como arte divinatória como gotas espessas de sabedoria. Em meio século de carreira, ele se pronunciou sobre virtualmente tudo o que há para se pronunciar: política, amor, guerra, ecologia, religião, morte, arte. E, quando o fez, fê-lo com a autoridade moral de profeta que atravessou várias crenças e descrenças.

Dylan despontou para Nova York e para o mundo como um trovador folk. Nesta condição, participou do comício de 28 de agosto de 1963, em Washington, no qual Martin Luther King Jr. contou a 200 mil manifestantes pelos Direitos Civis o seu célebre sonho: "Um dia meus quatro filhos pequenos viverão num país em que não serão julgados pela cor de suas peles, mas pelo conteúdo de seu caráter." De alguma forma, a poderosa retórica batista de Luther King Jr. já ressoava pela obra deste judeu de Duluth, Minnesota, que dois anos antes largara a universidade ainda como calouro e fora pregar o próprio evangelho pelos bares do Greenwich Village. Esta, porém, não seria sua influência mais óbvia. Dylan idolatrava Woody Guthrie, que escavara a canivete no tampo de seu violão a frase "Esta máquina mata fascistas", e com certeza lera com atenção poetas beat como Allen Ginsberg.

Havia ainda, é claro, o fascínio primeiro por Dylan Thomas, tão intenso que lhe fornecera o sobrenome artístico. Diferentemente da impenetrabilidade da poesia do galês, entretanto, o pulo do gato de Bob Dylan foi unir uma erudição instintiva à capacidade de comunicá-la de forma eficiente, pop. As letras de Dylan ofereciam - e oferecem - inúmeras camadas de interpretação e permitiam ao rock, gênero pelo qual ele se interessara ainda antes de virar o cantor folk por excelência, a autoconsciência da própria complexidade e importância. Dylan abandonou a universidade, certo, mas sua obra voltou a ela pela porta da frente. Existe uma anedota daquelas que se não for verdadeira é bem achada. Dizem que Dylan entrou incógnito num grupo de discussões sobre suas letras na internet. Diante de um despautério, contudo, ele não pôde deixar de se manifestar e afirmar que não quisera dizer nada daquilo que lhe era atribuído. Foi expulso do grupo como impostor, óbvio.

O impacto de centenas de letras como as de Blowin' In the WindThe Times They're a-Changin'Don't Think Twice it's All Right ou Hurricane ultrapassou as fronteiras artísticas e conquistou para o rock o respeito de exegetas que antes consideravam aquela música sem nenhuma relevância cultural. No Brasil, papel análogo foi desempenhado por Vinicius de Moraes. Embora obviamente já existissem ótimas letras no nosso cancioneiro, foi apenas quando o diplomata e poeta tornou-se também letrista - sob a desconfiança e o desprezo de muitos de seus pares - que se reavaliou com a devida correção as possibilidades intelectuais da música popular. De certa forma, então, Dylan foi o Vinicius dos anglófonos.

Lord Byron, Oscar Wilde e Delmore Schwartz

Inspirados por Dylan, letristas como Lou Reed beberam poesia nas melhores fontes

Dylan tem um filho cantor, Jakob. O líder dos Wallflowers, porém, está longe de ser o melhor exemplar de rebento intelectual. Este talvez seja Lewis Allan Reed, ou Lou Reed. Tanto no Velvet Underground - grupo apadrinhado pelo artista plástico Andy Warhol que dividia com outra boa cabeça do rock, John Cale - quanto na sua carreira solo, Reed atraiu atenção e escândalo porque se propôs a falar do lado selvagem da vida. Sua música mais famosa, aliás, Walk on The Wild Side, de 1972, habitava um universo de travestis e sexo oral. Tempos depois, num documentário sobre essa canção, David Byrne dizia se indagar a cada vez que ouvia pessoas cantarolando o refrão: "Será que elas sabem do que se fala?!"

Ainda a bordo do Velvet Underground, Reed havia feito polaróides da sujeira sob o tapete dos anos 60. Quando os Beatles decretaram ao final da década que o sonho tinha acabado, ele deve ter dado um sorrisinho sarcástico e dito "ah, é, não diga..." Em 1967, no famoso "disco da banana", cuja capa fora desenhada por Warhol, Reed falou desabridamente sobre drogas em Heroin, música que emulava a gangorra de excitação e prostração do vício. I'm Waiting for The Man tratava de prostituição e Venus in Furs, de sadomasoquismo: "Falem os chicotes, a cinta que espera por você/ Castigue-o minha senhora, para que seu coração seja curado" (a tradução é a do livro Atravessar o Fogo).

O choque não era dado só pela temática pesada, pouco usual na música da época, mas pelo tratamento musical e poético. Havia um fascinante contraste entre a vida baixa retratada e a alta cultura do retrato. A derradeira faixa daquele LP, European Son, era um réquiem cacofônico para o poeta Delmore Schwartz, ex-professor de Reed na faculdade de artes e ciências de Syracuse que morrera de ataque cardíaco no ano anterior. Seu corpo ficara dias à espera de identificação num necrotério. O lado selvagem. No prefácio a Atravessar o Fogo, Reed reconhece: "Delmore Schwartz, meu professor, me apresentou à beleza da frase simples, e foi o que tentei seguir ao longo de uma vida escrevendo."

Na Inglaterra, entre muitos exemplos dessa elaborada oralidade, presente também nos beats ou em Dylan, está Steven Patrick Morrissey. Sua poética está enraizada em Lord Byron ou Mary Shelley, enquanto suas tiradas ácidas remetem a Oscar Wilde. Quando os Smiths acabaram, em 1987, Morrissey partiu para uma carreira solo de achados funcionais como "eu nunca pretendi matar/ eu não sou naturalmente mau/ fiz tais coisas/ apenas para me fazer/ mais atraente para você/ terei falhado?" (The Last of The Famous International Playboys).

No Brasil, Caetano Veloso admitiu no livro Verdade Tropical que, mesmo preferindo os Beatles e não entendendo direito o inglês de Dylan, este talvez lhe tenha sugerido frases e ideias para suas próprias canções. A afinidade com o americano fica evidente na felicidade da versão em português para It's All Over Now, Baby Blue (Negro Amor). Influências menos oblíquas de Dylan estão no fã declarado Renato Russo. Como Trovador Solitário, no hiato entre o Aborto Elétrico e a Legião Urbana, ele se apresentava só, ao violão, cantando uma saga como Faroeste Caboclo, de 159 versos sem repetição. Afinal, Dylan dera um ultimato aos letristas: se eles queriam escrever algo bom, teriam de pular mais alto. O sarrafo subira.

Com o indicador no mouse e o polegar no controle remoto

A geração dos anos 90 para cá não é influenciada pelos livros, e sim pela televisão e pela internet

Até a chegada da década de 1990, os garotos e garotas com maturidade intelectual para escrever boas letras de música tinham tido uma formação baseada em textos, não em imagens. Sua cultura ainda era basicamente literária, linear. Isso criava uma certa continuidade estética entre os poetas pré-rock'n'roll e as novas gerações, como no caso dos escritores de beats e de Dylan, ou Delmore Schwartz e de Reed. Porém, com a entrada em cena de letristas nascidos diante do aparelho de televisão, os versos passaram a funcionar quase como epigramas, reveladores de um estado de espírito mais inquieto que o polegar na tecla do controle remoto, em vez de constituir histórias com início, meio e fim.

A primeira cabeça representativa da turma da fragmentação foi a de Kurt Cobain, de Seattle, o líder do Nirvana que se suicidaria em 1994, no ponto mais baixo de uma espiral de drogadição e insegurança. Na biografia Come As You Are, de Michael Azerrad, são abundantes os testemunhos de como Cobain deixava para escrever as letras em cima da hora, num canto de estúdio. O seu desespero era transmitido pela alternância entre agitação e calmaria nos instrumentos do grupo, entre gritos e sussurros nas próprias cordas vocais. A letra era quase secundária, mas não desprezível, na sua arte.
Na época em que música Smells Like Teen Spirit explodiu na MTV americana, a emissora fez uma enquete entre seus espectadores: "O que diz a letra?" As pessoas ouviram as coisas mais disparatadas. Inclusive porque Cobain lhes oferecia, sim, imagens disparatadas, como "um mulato/ um albino/ um mosquito/ minha libido/ yeah". E assim, para seu terror, Cobain descobriu-se porta-voz de uma geração que achava não ter nada a dizer. O que nem era verdade: ela não tinha a dizer à moda antiga. Leia-se a tristíssima Pennyroyal Tea, ou "Chá de erva poejo", de supostas características abortivas. Nela, Cobain escreveu: "Sente-se e beba chá de poejo/ Destile a vida que está dentro de mim." Imagem forte e bonita.

Outros talentos burilaram a nova estética, à medida que a fragmentação audiovisual era radicalizada pela digital como fonte de educação sentimental da rapaziada. E o inglês Thom Yorke, do cultuado Radiohead, acabou herdando o bastão de intérprete das angústias geracionais após a morte de Cobain. Seu grande hit - agora raramente executado ao vivo - expressa de forma simples a inadequação da juventude. "Você flutua como uma pena/ Num mundo maravilhoso/ Eu queria ter sido especial/ Tão especial/ Mas eu sou um verme/ Eu sou esquisitão/ Que diabos faço aqui?/ Eu não pertenço a este lugar", avisa Creep.

No país onde alguns se apressaram a decretar a morte da canção apenas porque ela já não se apresenta da velha forma, os expoentes dessa sensibilidade fragmentada, concisa, são os dois letristas oriundos do grupo Los Hermanos, hoje desativado: Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante. Praticamente orados pelas plateias, com um fervor que não se via desde o auge da idolatria à Legião Urbana, seus versos ora se agrupam na obscuridade ora no nonsense mesmo, como em Do Sétimo Andar: "Parece que foi ontem, eu fiz/ Aquele chá de habu/ Pra te curar da tosse e do chulé/ Pra te botar de pé." A estrofe foi escrita por Amarante em 2003, antes do advento do Twitter, mas dá e sobra em 140 toques.
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O LIVRO
ARTHUR DAPIEVE é jornalista, crítico de música, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autor de Conversa Sobre o Tempo (Editora Agir), entre outros.
Atravessar o Fogo, de Lou Reed. Tradução: Caetano W. Galindo e Christian Schawrtz. Companhia das Letras, 794 págs. Preço a definir.


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