Lula tentou currar
colega de cela, diz Benjamin
A prisão na Polícia do Exército da Vila
Militar, em setembro de 1971, era especialmente ruim: eu ficava nu em uma cela
tão pequena que só conseguia me recostar no chão de ladrilhos usando a
diagonal. A cela era nua também, sem nada, a menos de um buraco no chão que os
militares chamavam de "boi"; a única água disponível era a da
descarga do "boi". Permanecia em pé durante as noites, em inúteis
tentativas de espantar o frio. Comia com as mãos. Tinha 17 anos de idade.
Um dia a equipe de plantão abriu a porta de
bom humor. Conduziram-me por dois corredores e colocaram-me em uma cela maior
onde estavam três criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson,
incentivados ali mesmo a me usar como bem entendessem. Os três, porém, foram
gentis e solidários comigo. Ofereceram-me logo um lençol, com o qual me cobri,
passando a usá-lo nos dias seguintes como uma toga troncha de senador romano.
Oriundos de São Paulo, Caveirinha e Português disseram-me que "estavam
pedidos" pelo delegado Sérgio Fleury, que provavelmente iria matá-los.
Nelson, um mulato escuro, passava o tempo cantando Beatles, fingindo que sabia
inglês e pedindo nossa opinião sobre suas caprichadas interpretações. Repetia
uma ideia, pensando alto: "O Brasil não dá mais. Aqui só tem gente
esperta. Quando sair dessa, vou para o Senegal. Vou ser rei do Senegal".
Voltei para a solitária alguns dias depois.
Ainda não sabia que começava então um longo período que me levou ao limite.
Vegetei em silêncio, sem contato humano, vendo só quatro paredes
-"sobrevivendo a mim mesmo como um fósforo frio", para lembrar Fernando
Pessoa- durante três anos e meio, em diferentes quartéis, sem saber o que
acontecia fora das celas. Até que, num fim de tarde, abriram a porta e
colocaram-me em um camburão. Eu estava sendo transferido para fora da Vila
Militar.
A caçamba do carro era dividida ao meio por
uma chapa de ferro, de modo que duas pessoas podiam ser conduzidas sem que
conseguissem se ver. A vedação, porém, não era completa. Por uma fresta de
alguns centímetros, no canto inferior à minha direita, apareceram dedos que,
pelo tato, percebi serem femininos. Fiquei muito perturbado (preso vive de
coisas pequenas). Há anos eu não via, muito menos tocava, uma mulher.
Fui desembarcado em um dos presídios do
complexo penitenciário de Bangu, para presos comuns, e colocado na galeria F, "de
alta periculosia", como se dizia por lá. Havia 30 a 40 homens, sem
superlotação, e três eram travestis, a Monique, a Neguinha e a Eva. Revivi o
pesadelo de sofrer uma curra, mas, mais uma vez, nada ocorreu. Era Carnaval, e
a direção do presídio, excepcionalmente, permitira a entrada de uma televisão
para que os detentos pudessem assistir ao desfile. Estavam todos ocupados,
torcendo por suas escolas. Pude então, nessa noite, ter uma longa conversa com
as lideranças do novo lugar: Sapo Lee, Sabichão, Neguinho Dois, Formigão, Ari
dos Macacos (ou Ari Navalhada, por causa de uma imensa cicatriz que trazia no
rosto) e Chinês. Quando o dia amanheceu éramos quase amigos, o que não impediu
que, durante algum tempo, eu fosse submetido à tradicional série de "provas
de fogo", situações armadas para testar a firmeza de cada novato.Quando
fui rebatizado, estava aceito. Passei a ser o Devagar. Aos poucos, aprendi a
"língua de congo", o dialeto que os presos usam entre si para não
serem entendidos pelos estranhos ao grupo.
Com a entrada de um novo diretor, mais
liberal, consegui reativar as salas de aula do presídio para turmas de primeiro
e de segundo grau. Além de dezenas de presos, de todas as galerias, guardas
penitenciários e até o chefe de segurança se inscreveram para tentar um diploma
do supletivo. Era o que eu faria, também: clandestino desde os 14 anos, preso
desde os 17, já estava com 22 e não tinha o segundo grau.
Tornei-me o professor de todas as matérias,
mas faria as provas junto com eles.
Passei assim a maior parte dos quase dois anos
que fiquei em Bangu. Nos intervalos das aulas, traduzia livros para mim mesmo,
para aprender línguas, e escrevia petições para advogados dos presos ou cartas
de amor que eles enviavam para namoradas reais, supostas ou apenas desejadas,
algumas das quais presas no Talavera Bruce, ali ao lado. Quanto mais melosas,
melhor.Como não havia sido levado a julgamento, por causa da menoridade na
época da prisão, não cumpria nenhuma pena específica. Por isso era mantido
nesse confinamento semiclandestino, segregado dos demais presos políticos.
Ignorava quanto tempo ainda permaneceria nessa situação.
Lembro-me com emoção -toda essa trajetória me
emociona, a ponto de eu nunca tê-la compartilhado- do dia em que circulou a
notícia de que eu seria transferido. Recebi dezenas de catataus, de todas as
galerias, trazidos pelos próprios guardas. Catatau, em língua de congo, é uma
espécie de bilhete de apresentação em que o signatário afiança a seus
conhecidos que o portador é "sujeito-homem" e deve ser ajudado nos
outros presídios por onde passar.Alguns presos propuseram-se a organizar uma
rebelião, temendo que a transferência fosse parte de um plano contra a minha
vida. A essa altura, já haviam compreendido há muito quem eu era e o que era
uma ditadura. Eu os tranquilizei: na Frei Caneca, para onde iria, estavam os
meus antigos companheiros de militância, que reencontraria tantos anos depois.
Descumprindo o regulamento, os guardas permitiram que eu entrasse em todas as
galerias para me despedir afetuosamente de alunos e amigos. O Devagar ia
embora.
São Paulo, 1994. Eu estava na casa que servia
para a produção dos programas de televisão da campanha de Lula. Com o Plano
Real, Fernando Henrique passara à frente, dificultando e confundindo a nossa
campanha.Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me instalei na
produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar ajudar. Lá pelas tantas,
recebi um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos Estados Unidos
um renomado marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula gravava os programas, mais ou
menos, duas vezes por semana, de modo que convivi com o americano durante
alguns dias sem que ele houvesse ainda visto o candidato.Dizia-me da
importância do primeiro encontro, em que tentaria formatar a psicologia de
Lula, saber o que lhe passava na alma, quem era ele, conhecer suas opiniões
sobre o Brasil e o momento da campanha, para então propor uma estratégia. Para
mim, nada disso fazia sentido, mas eu não queria tratá-lo mal.
O primeiro encontro foi no refeitório, durante um
almoço. Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário
Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e
outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também esqueci.
Lula puxou conversa: "Você esteve preso, não é Cesinha?"
"Estive." "Quanto tempo?" "Alguns anos...",
desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula continuou: "Eu não
aguentaria. Não vivo sem boceta".
Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência
como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido.
Chamava-o de "menino do MEP", em referência a uma organização de
esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do
"menino", que frustrara a investida com cotoveladas e socos.
Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto
ouvia a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter
sido, digamos assim, o "menino do MEP" nas mãos de criminosos comuns
considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas
condições, sempre me respeitaram.
O marqueteiro americano me cutucava,
impaciente, para que eu traduzisse o que Lula falava, dada a importância do
primeiro encontro. Eu não sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava
ouvindo. Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem
importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu trabalho. Ficou
bravo e, felizmente, desapareceu.
Dias depois de ter retornado para a solitária,
ainda na PE da Vila Militar, alguém empurrou por baixo da porta um exemplar do
jornal "O Dia". A matéria da primeira página, com direito a manchete
principal, anunciava que Caveirinha e Português haviam sido localizados no
bairro do Rio Comprido por uma equipe do delegado Fleury e mortos depois de
intensa perseguição e tiroteio. Consumara-se o assassinato que eles haviam
antevisto.
Nelson, que amava os Beatles, não conseguiu
ser o rei do Senegal: transferido para o presídio de Água Santa, liderou uma
greve de fome contra os espancamentos de presos e perseverou nela até morrer de
inanição, cerca de 60 dias depois. Seu pai, guarda penitenciário, servia
naquela unidade.
Neguinho Dois também morreu na prisão. Sapo
Lee foi transferido para a Ilha Grande; perdi sua pista quando o presídio de lá
foi desativado. Chinês foi solto e conseguiu ser contratado por uma empreiteira
que o enviaria para trabalhar em uma obra na Arábia, mas a empresa mudou os
planos e o mandou para o Alasca.
Na última vez que falei com ele, há mais de 20
anos, estava animado com a perspectiva do embarque: "Arábia ou Alasca,
Devagar, é tudo as mesmas Alemanhas!" Ele quis ir embora para escapar do
destino de seu melhor amigo, o Sabichão, que também havia sido solto, novamente
preso e dessa vez assassinado. Não sei o que aconteceu com o Formigão e o Ari
Navalhada.
A todos, autênticos filhos do Brasil, tão
castigados, presto homenagem, estejam onde estiverem, mortos ou vivos, pela
maneira como trataram um jovem branco de classe média, na casa dos 20 anos, que
lhes esteve ao alcance das mãos.
Eu nunca soube quem é o "menino do
MEP". Suponho que esteja vivo, pois a organização era formada por gente
com o meu perfil. Nossa sobrevida, em geral, é bem maior do que a dos pobres e
pretos.
O homem que me disse que o atacou é hoje
presidente da República. É conciliador e, dizem, faz um bom governo. Ganhou
projeção internacional. Afastei-me dele depois daquela conversa na produtora de
televisão, mas desejo-lhe sorte, pelo bem do nosso país. Espero que tenha
melhorado com o passar dos anos.
Mesmo assim, não pretendo assistir a "O
Filho do Brasil", que exala o mau cheiro das mistificações. Li nos jornais
que o filme mostra cenas dos 30 dias em que Lula esteve detido e lembrei das
passagens que registrei neste texto, que está além da política. Não pretende
acusar, rotular ou julgar, mas refletir sobre a complexidade da condição
humana, justamente o que um filme assim, a serviço do culto à personalidade,
tenta esconder.
CÉSAR
BENJAMIN, 55, militou no
movimento estudantil secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade
depois da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano,
juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de
1971, com 17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou
a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a
vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do
qual também se desfiliou.
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