quarta-feira, 12 de junho de 2013

HISTERIA: SOMATIZAÇÃO CONVERSÃO E DISSOCIAÇÃO

A HISTERIA COMO COMPORTAMENTO



A palavra histeria, sem dúvida, é um dos termos mais conhecidos da psiquiatria. Seu uso consagrado nos manuais clássicos de psiquiatria desapareceu com a evolução da nosologia psiquiátrica atual e com o advento dos modernos manuais de classificação da Associação Psiquiátrica Americana a partir dos DSM-III e DSM-IV. Nestes novos modelos nosológicos, o termo histeria foi desmembrado de acordo com a localização ou a origem dos sintomas. Os sintomas histéricos de natureza física (sensitivo-motor) passaram a ser denominados somatoformes (incluindo-se aqui a conversão e a somatização) e as manifestações de natureza psicológica passaram a ser denominadas dissociativas. Apesar das inúmeras vantagens dessa nova divisão categorial, a separação da histeria segundo uma visão dualista-cartesiana limitou o avanço no entendimento e nas pesquisas ligadas aos fenômenos histéricos, na medida em que privilegiou o estudo de sinais e sintomas isoladamente, descontextualizados de seus objetivos e significados sociais.

A histeria deve ser entendida como um comportamento e não como uma doença em si, já que o paciente apresenta uma gama de sintomas “direcionados” para mimetizar uma doença física ou psicológica. Este “comportamento de doença”, cuja origem está no significado social de “estar doente” e cujo objetivo está nos ganhos e vantagens que o papel de doente representa, é, na verdade, uma ação desviante desenvolvida pela crença de “estar doente” que fornece ao paciente uma saída honrosa (socialmente aceitável) para a impossibilidade de resolução de problemas ou dilemas pessoais. Ao contrário do que muitos imaginam, a histeria permanece tão prevalente atualmente quanto era no passado. Ela se “modificou” seguindo as mudanças sociais ligadas ao conceito de doença e se adaptou para melhor imitá-la. Não raramente, apresenta-se hoje em dia sob a faceta de um transtorno psiquiátrico.

SOMATIZAÇÃO

Origem do Conceito e Definições

O termo somatização foi criado em 1943 por Stekel para definir um “distúrbio corporal que surge como expressão de uma neurose profundamente assentada, uma doença do inconsciente”. Na literatura médica, diversos autores usam o termo “somatização” com significados variados, muitos chegando a usá-lo como sinônimo de histeria e de conversão. Na verdade, o termo deriva da conceituação original da conversão, feita por Freud, e dos estudos sobre a histeria feitos inicialmente pelo médico francês Pierre Briquet, em 1859. De forma didática, podemos operacionalizar e entender o termo somatização de quatro formas:

      como sintomas somáticos ou queixas físicas inexplicáveis;
      como preocupação somática excessiva ou hipocondríaca;
    como apresentação somática clínica de um transtorno de humor, de ansiedade ou   outro transtorno mental;
     como sintomas somáticos no contexto de uma síndrome clínica funcional (fibromialgia, cólon irritável, fadiga crônica).

Diversas doenças clínicas, muitas vezes com etiologia clara ou conhecida apenas em parte, têm sido estudadas no que concerne à influência de fatores psicológicos como estresse, ansiedade, estado de humor, traços de personalidade e de comportamento na gênese ou exacerbação dos seus sintomas. Tais afecções têm sido historicamente denominadas doenças psicossomáticas, por uma clara associação de vulnerabilidade para o aparecimento ou piora da doença na concomitância de estressores psicológicos ou psicossociais. As chamadas doenças psicossomáticas (p.ex., asma, úlcera péptica, retocolite ulcerativa, hipertensão arterial sistêmica, artrite reumatoide, psoríase, lúpus eritematoso sistêmico) diferem do que chamamos de somatização pelo conhecimento da existência de mecanismos fisiopatológicos que explicam os sintomas apresentados, enquanto a somatização pressupõe a presença de sintomas físicos inexplicáveis. Além disso, no transtorno de somatização, encontramos uma psicopatologia específica, em que o sintoma somático apresenta um valor simbólico característico, o que também diferencia este transtorno dos anteriores.

Define-se, desta forma, somatização pela ocorrência de múltiplos sintomas físicos significativos que se originam de diferentes órgãos ou sistemas, os quais não podem ser objetivamente validados nem completamente explicados por uma condição médica conhecida, efeito direto de uma substância ou produção voluntária pelo indivíduo.

Estima-se que cerca de 60 a 80% da população apresenta alguma queixa somática durante uma semana qualquer sem, entretanto, procurar auxílio médico. Quando um paciente procura um médico devido a um sintoma físico, em 20 até 84% dos casos não se encontra causa orgânica que explique sua queixa. No entanto, o transtorno de somatização tem sua prevalência de vida estimada entre 0,2 e 2%, já que se exigem critérios mais restritivos para o seu diagnóstico.

Os desafios na avaliação diagnóstica do transtorno de somatização são dois: a diferenciação com doenças clinicamente relevantes que cursam com sintomas flutuantes provenientes de diferentes sistemas (esclerose múltipla, lúpus eritematoso sistêmico e porfiria aguda intermitente), e a prevenção de procedimentos diagnósticos invasivos e iatrogênicos. Outro desafio não menos importante é a comunicação diagnóstica adequada, evitando reações psicológicas disfuncionais, como vergonha, culpa, negação ou ambivalência, que acabam por afastar o paciente do médico, fazendo invariavelmente com que ele procure outro serviço de saúde.

Relevância do Problema

Segundo estudos realizados nos EUA, estima-se que 10% dos recursos financeiros destinados aos serviços de saúde do país são utilizados em pacientes com transtornos somatoformes, o que dá uma ideia aproximada da dimensão econômica do problema.
O transtorno de somatização acarreta problemas sociais e psicológicos, ocorrendo em indivíduos jovens que podem se tornar incapazes de trabalhar ou estudar. Do ponto de vista médico, os pacientes podem não receber o tratamento adequado e ficar expostos a procedimentos iatrogênicos. Há uma clara deterioração da qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.

Achados Clínicos

A característica essencial da somatização é um padrão de múltiplas queixas somáticas recorrentes e clinicamente significativas, sendo muito mais comum nas mulheres do que nos homens. A prevalência de vida, que é de 2% no sexo feminino, não atinge 0,2% no sexo masculino. Frequentemente os sintomas somáticos se iniciam na adolescência, sendo que, nas mulheres, queixas de dificuldades menstruais podem representar um dos sintomas mais precoces. Para o diagnóstico de transtorno de somatização, os sintomas devem ter início antes dos 30 anos. O início de múltiplos sintomas físicos em um período tardio da vida é quase sempre devido a uma condição médica geral. Como a exclusão de causas orgânicas que justifiquem as queixas é obrigatória, o diagnóstico de transtorno de somatização não deve ser suspeitado de maneira prematura, sem que antes uma anamnese minuciosa e um exame físico detalhado tenham sido feitos. Uma queixa somática deve ser considerada clinicamente significativa se resultar em tratamento médico (tomar um remédio ou submeter-se a uma cirurgia) ou causar prejuízo significativo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

Apresentação dos Sintomas Somáticos

Uma revisão completa dos tratamentos somáticos e hospitalizações sofridos pelo doente pode revelar um padrão de queixas somáticas frequentes. Os sintomas se apresentam de forma crônica e flutuante, raramente apresentando remissão completa. Estes incluem:

1.    Dor, que pode ser percebida em várias partes do corpo (cabeça, pescoço, abdome, costas, tórax, articulações, reto) e em diversas situações (durante atividade sexual, micção, menstruação). Por definição, a somatização deve conter sintomas álgicos oriundos de diversas partes do corpo, ocorrendo aleatoriamente em relação ao tempo e à localização física.
2.  Sintomas gastrintestinais autonômicos com náusea, diarreia, vômitos e intolerância alimentar.
3.   Distúrbios sexuais e do sistema reprodutor com irregularidade menstrual, vaginismo, impotência e indiferença sexual.
4.    Sinais e sintomas pseudoneurológicos que não dor, tais como fraqueza, paralisia, dificuldade na deglutição ou “bolo” na garganta, desequilíbrio, afonia, retenção urinária, alucinações, amnésia, surdez, cegueira, crises “convulsivas” e perda da consciência (Tabela 1).

Tabela 1: Critérios diagnósticos para transtorno de somatização (DSM-IV, APA, 2000)
Critério
Descrição
A
Um histórico de muitas queixas físicas com início antes dos 30 anos de idade, que ocorrem por um período de vários anos e resultam em busca de tratamento ou prejuízo significativo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes do funcionamento do indivíduo.
B
Cada um dos seguintes critérios deve ter sido satisfeito, com os sintomas individuais ocorrendo em qualquer momento durante o curso do distúrbio:
1)     quatro sintomas dolorosos: histórico de dor relacionada a pelos menos 4 locais ou funções diferentes (cabeça, abdome, costas, tórax, articulações, extremidades, reto, durante a menstruação, durante a relação sexual ou durante a micção).
2)     dois sintomas gastrintestinais: histórico de pelo menos dois sintomas gastrintestinais outros que não dor (náusea, inchaço, vômito outro que não durante a gravidez, diarreia ou intolerância a diversos alimentos)
3)     um sintoma sexual: histórico de pelo menos um sintoma sexual ou reprodutivo outro que não dor (indiferença sexual, disfunção erétil ou ejaculatória, irregularidades menstruais, sangramento menstrual excessivo, vômitos durante toda a gravidez)
4)     um sintoma pseudoneurológico: histórico de pelo menos um sintoma ou déficit sugerindo um problema neurológico não limitado a dor (sintomas conversivos como prejuízo de coordenação ou equilíbrio, paralisia ou fraqueza localizada, dificuldade na deglutição ou nó na garganta, afonia, retenção urinária, alucinações, perda de sensação de tato ou dor, diplopia, cegueira, surdez, convulsões; sintomas dissociativos como amnésia ou perda da consciência outra que não por desmaio)
C
1 ou 2:
1)     após investigação apropriada, nenhum dos sintomas no Critério B pode ser completamente explicado por uma condição médica geral conhecida ou pelos efeitos diretos de uma substância (p.ex., droga de abuso, medicamento)
2)     quando existe uma condição médica geral relacionada, as queixas físicas ou o prejuízo social ou ocupacional resultante excedem o que seria esperado a partir do histórico, do exame físico ou dos achados laboratoriais
D
Os sintomas não são intencionalmente produzidos ou simulados (como no transtorno factício ou na simulação)

Exame do Estado Mental do Paciente com Somatização

Os pacientes com transtorno de somatização descrevem suas queixas de forma dramática e exagerada. Eles frequentemente oferecem histórias vagas, inconsistentes, em que faltam informações factuais específicas, dificultando a coleta de dados na anamnese. Apresentam labilidade emocional, são sugestionáveis, têm dificuldade de se concentrar em detalhes específicos da sua história ou quando solicitados para realizar tarefas trabalhosas. Nestas situações, ou quando se sentem incompreendidos ou rejeitados, não é raro apresentarem os sintomas dos seus problemas, numa “demonstração” de suas somatizações. Tais pacientes negam de maneira veemente qualquer associação de seus sintomas com problemas ou estressores psicológicos. Frequentemente se recusam a abordar seus problemas pessoais, a não ser sob a perspectiva do seu problema de saúde. Sentem-se rejeitados e incompreendidos pelo que os seus familiares ou médicos pensam dos seus sintomas, por considerarem que eles os acusam de forjarem os sintomas. Estão à procura constante de aceitação. Frequentemente a avaliação dos pacientes com somatização provocam reações de irritação e rejeição por parte do examinador, em função da inconsistência e exagero das queixas, o que leva a uma deterioração do padrão de comunicação na relação médico-paciente.

Diagnóstico Diferencial

Pelo menos quatro patologias médicas com substrato orgânico conhecido se apresentam com queixas flutuantes em diferentes sistemas ou órgãos, podendo então mimetizar um transtorno de somatização:

      esclerose múltipla;
      lúpus eritematoso sistêmico;
      porfiria aguda intermitente;
      mitocondriopatias.

Outras condições que podem se apresentar com sintomas vagos e confusos, como hiperparatireoidismo, doença de Lyme, hemocromatose ou doença parasítica crônica, também devem ser afastadas.

Vários transtornos mentais podem se apresentar com queixas somáticas, sendo que os mais comuns (transtornos do humor e de ansiedade) são muito mais prevalentes do que o transtorno de somatização. Cerca de 50% de todos os pacientes que procuram atendimento psiquiátrico em unidade básica de saúde e recebem algum diagnóstico se apresentam, inicialmente, com queixas exclusivamente somáticas. Já em relação aos pacientes que recebem o diagnóstico de transtorno depressivo maior ou transtorno de pânico, cerca de 75% apresentam somente queixas somáticas numa primeira entrevista.

Embora o transtorno de somatização seja caracterizado por queixas somáticas sem correlação com anormalidades orgânicas, as síndromes clínicas chamadas de funcionais também são definidas pela ausência de alterações laboratoriais. São, portanto, diagnosticadas por meio de critérios diagnósticos que se baseiam na descrição de sintomas e no curso natural da doença, de modo análogo aos critérios diagnósticos propostos nos manuais modernos de psiquiatria.

As três síndromes clínicas funcionais mais importantes do ponto de vista do diagnóstico diferencial do transtorno de somatização são a síndrome da fadiga crônica, a fibromialgia e as síndrome do cólon irritável.

O abuso de álcool deve sempre ser considerado em pacientes que mantêm múltiplos sintomas somáticos crônicos e vagos. O uso crônico do álcool favorece o aparecimento de distúrbios do sono, traumas por queda, alterações nutricionais e metabólicas que podem cursar com inúmeros sintomas somáticos, como cefaleia, parestesias, fraqueza, fadiga, palpitações, dor em extremidades e queixas gastrintestinais.

Se há suspeitas de que os sintomas possam ser intencionalmente produzidos, devemos investigar a existência de dois transtornos mentais distintos: a simulação (malingering), onde os sintomas (somáticos ou psicológicos) são intencionalmente produzidos com o objetivo de um ganho secundário claro (aposentadoria, pensão, redução de pena judicial, e o transtorno factício, em que o paciente também produz o sintoma de forma intencional, porém com o propósito de estar no “papel” de doente e sem nenhum benefício secundário claro.

Exames Complementares

O diagnóstico de transtorno de somatização é eminentemente clínico, baseado na anamnese psiquiátrica minuciosa e nos critérios diagnósticos específicos. Exames complementares devem ser solicitados quando suspeitas diagnósticas claras levarem a um diagnóstico diferencial. A solicitação de exames de forma indiscriminada e sem critérios objetivos pode contribuir para reforçar a ideia da existência de uma “doença obscura”, ocasionando manutenção ou piora das queixas, além de expor o paciente a procedimentos invasivos e iatrogênicos.

Os resultados dos exames são geralmente normais, notoriamente negativos para as doenças pesquisadas. Achados de anormalidades nos exames complementares devem ser interpretados cuidadosamente, sempre à luz do quadro clínico. Não raramente introduzem confusão diagnóstica significativa e contribuem para o agravamento do transtorno de somatização.

CONVERSÃO E DISSOCIAÇÃO

Origem do Conceito e Definições

A investigação da conversão e da dissociação iniciou-se com os estudos originais da histeria, uma “disfunção do sistema nervoso” como resultado de um evento estressor que atuaria na parte afetiva do cérebro” de indivíduos vulneráveis, que datam de 1859, ano da publicação do “Tratado clínico e terapêutico da histeria” de Pierre Briquet. Além de Briquet, outros autores, como Reynolds (1969) e o neurologista francês Jean Martin Charcot (1889), deram importantes contribuições para o avanço do estudo do que chamavam de “paralisias e distúrbios das sensações dependentes da ideia”.

Entretanto, o uso do termo conversão surge pela primeira vez nos trabalhos de Sigmund Freud e Josef Breuer em 1894, para designar um sintoma motor em substituição a uma ideia reprimida. O termo dissociação surge a partir dos trabalhos de Pierre Janet em 1907, nos quais o autor desenvolve um modelo de dissociação em que “uma informação é mantida fora da consciência, de forma inalterada, mas exerce efeitos em funções motoras/sensoriais através de mecanismos inconscientes, originando os sintomas dissociativos”. É importante ressaltar que tanto Freud como Janet, influenciados pelo trabalho e contato pessoal com Charcot, postulavam que as informações ou conflitos mantidos fora da consciência poderiam ser acessados através da técnica de hipnose. Freud, mais tarde, usaria a hipnose também com finalidades terapêuticas.

Atualmente, define-se conversão como a presença de um ou mais sintomas ou déficits que afetam a função motora voluntária ou sensorial, sugerindo a presença de uma doença neurológica ou de outra condição médica que não pode ser comprovada objetivamente. Há fatores psicológicos associados com a gênese do sintoma ou déficit. A dissociação é definida pela existência de uma perturbação nas funções habitualmente integradas da consciência, memória, identidade ou percepção do ambiente. Fatores psicológicos importantes, como conflitos ou dilemas insuperáveis, também são responsáveis pelo aparecimento de sintomas dissociativos. Nos dois casos, admite-se a participação de mecanismos psicológicos inconscientes, ou seja, os sintomas são involuntários.

Tradicionalmente, a avaliação de um paciente com suspeita de um quadro conversivo ou dissociativo passa pelo desafio de se excluir uma condição médica geral, uso de substância ou doença neurológica que justifique ou explique a presença dos sintomas motores/sensitivos (paralisias, convulsões, anestesias, ataxias), no caso de conversão; ou de perturbações das funções mnésticas e integradoras da consciência (amnésias, fugas, transes, despersonalizações), no caso de dissociação. Cabe ainda investigar se os sintomas apresentados podem ser de natureza voluntária e motivação consciente (sintoma simulado), com objetivos externos evidentes, ou de natureza voluntária, mas com motivação inconsciente (sintoma factício), onde não há benefício externo, mas o desejo de estar “doente”. Deve-se lembrar, entretanto que, embora o diagnóstico de conversão ou dissociação só possa ser realizado na ausência de condição médica geral, uso de substância ou doença neurológica que explique os sintomas, o contrário não é verdade, ou seja, a presença de conversão ou dissociação não exclui a presença dos anteriores. O mesmo pode-se dizer sobre a presença de incentivos externos evidentes (ganho secundário), que embora não expliquem conversão ou a dissociação, podem eventualmente estar presentes, ao menos como elementos perpetuadores. Além disso, conversão e dissociação podem ocorrer no contexto de outros transtornos mentais, ou de maneira autônoma, como transtornos mentais independentes.

Relevância do Problema

Como o diagnóstico de conversão só pode ser realizado após a exclusão de problemas neurológicos, estudos epidemiológicos populacionais são escassos e discutíveis. Uma ideia mais aproximada de prevalência pode ser obtida a partir de populações mais específicas, no ambiente clínico ou neurológico. Um exemplo é a prevalência de crises não epilépticas psicogênicas, em sua maioria de natureza conversiva/dissociativa, que se estima ocorram em até 5% dos pacientes em ambulatórios de epilepsia e em até 20% dos casos que são avaliados em centros de epilepsia de difícil controle. Um dos problemas principais com que estes pacientes se defrontam é o alto índice de iatrogenia, pelo tratamento indevido a que são submetidos em função de diagnóstico incorreto.
Num ambiente hospitalar, 5 a 15% das consultas psiquiátricas envolvem a ocorrência de sintomas conversivos. Transtornos dissociativos têm a prevalência desconhecida na população, mas são considerados relativamente raros. Transtorno de identidade dissociativo tem chamado a atenção recentemente, mas há bastante controvérsia com relação à confiabilidade e à validade do diagnóstico, o que torna avaliações epidemiológicas difíceis.

Achados Clínicos

Conversão e dissociação são 2 a 5 vezes mais comuns nas mulheres do que nos homens. A prevalência de vida é estimada entre 5 e 14% para conversão e 5 e 8% para dissociação, podendo ser bastante variável de acordo com diferentes estudos. Os sintomas conversivos podem ocorrer em qualquer faixa etária, porém se iniciam mais comumente durante a adolescência e início da fase adulta. Já os sintomas dissociativos tendem a aparecer entre a 3a e a 4a década de vida. Raramente vemos estes sintomas antes dos 10 anos de idade e após os 80 anos.
Os sintomas conversivos têm, em geral, início abrupto e curso variado. Frequentemente o início das queixas está associado com eventos estressores significativos. A duração dos sintomas tende a ser curta, mas não sempre, com remissão ocorrendo dentro de 2 semanas após resolução do conflito ou da situação estressora desencadeante. Os sintomas conversivos geralmente mimetizam doenças neurológicas agudas e podem ter apresentações motoras ou sensitivas das mais variadas formas. Mais raramente podem se apresentar como sintomas viscerais ou autonômicos (Tabela 2).

Tabela 2: Sintomas conversivos mais comuns

Sintomas motores
Sintomas sensitivos
Movimentos involuntários
Anestesias (especialmente de extremidades)
Tiques
Anestesia da linha média
Blefaroespasmo
Cegueira
Opistótono
Surdez
Crises convulsivas
Alucinações
Quedas
Sintomas viscerais/autonômicos
Abasia
Vômitos psicogênicos
Paralisias
Pseudociese
Fraqueza
Síncope
Afonia
Retenção urinária
Anormalidades da marcha
Diarreia
Distonias
Globus hystericus

A presença de sintomas dissociativos está normalmente associada a eventos traumáticos específicos, conflitos emocionais evidentes ou dilemas insuperáveis. Os sintomas frequentemente têm início súbito (quadro agudo) e podem perdurar por horas ou dias e, mais raramente, meses a anos (quadro crônico). Podem se apresentar como amnésia, fuga repentina, mudança de identidade, experiências de estar “fora” do próprio corpo ou ainda experiência de ter o corpo “possuído” por outras entidades (Tabela 3).

Tabela 3: Sintomas dissociativos mais comuns

Amnésia
Desrealização
Despersonalização
Fuga
Confusão/Alteração de identidade
Transe/Possessão

Nota-se, desta forma, que a suspeita de um sintoma conversivo ou dissociativo exige a elaboração minuciosa de uma anamnese biográfica além da história clínica de rotina, já que a identificação de traumas remotos, como abuso físico e sexual, associados a fatores psicológicos estressores recentes ou dilemas emocionais insuperáveis podem auxiliar na compreensão da totalidade do quadro clínico.

Fatores Predisponentes

Experiências traumáticas em fases precoces da vida, como na infância, e a presença de estressores recentes, como problemas psicossociais, dilemas ou conflitos insolúveis, têm sido implicadas na gênese do aparecimento de sintomas conversivos e dissociativos, bem como na perpetuação destes na ausência de resolução dos estressores envolvidos. O convívio com outras pessoas que tiveram problemas neurológicos ou outras doenças médicas graves pode predispor ao aparecimento de sintomas conversivos em pacientes sugestionáveis. O testemunho de experiências de transe de natureza social ou religiosa, ou mesmo a ocorrência recente de alguma doença somática podem exercer efeito semelhante. História de abuso físico e/ou sexual também é comum nestes pacientes. A presença de ganhos secundários deve ser sempre investigada, dos mais óbvios (frequentemente relacionados à simulação) aos mais sutis, e é necessário julgamento clínico apurado para então se concluir sobre a natureza voluntária ou não dos sintomas.

Critérios Definidores

A presença de sintomas conversivos ou dissociativos na ausência de patologia médica, uso de substância ou que não são mais bem entendidos através de outro transtorno mental, pode ser definida como um transtorno independente, a saber: transtorno conversivo e transtorno dissociativo. A Associação Psiquiátrica Americana, no seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, exige critérios específicos para o diagnóstico de transtorno conversivo (Tabela 4) e subdivide os transtornos dissociativos em: amnésia dissociativa, fuga dissociativa, transtorno dissociativo de identidade e transtorno de despersonalização (Tabela 5).

Tabela 4: Critérios diagnósticos para transtorno conversivo (DSM-IV, APA, 2000)

A. Um ou mais sintomas ou déficits afetando a função motora ou sensorial voluntária, que sugerem uma condição neurológica ou outra condição médica geral.
B. Fatores psicológicos são julgados como associados com o sintoma ou déficit, uma vez que o início ou a exacerbação do sintoma ou déficit é precedido por conflitos ou outros estressores.
C. O sintoma ou déficit não é intencionalmente produzido ou simulado (como no transtorno factício ou na simulação).
D. O sintoma ou déficit não pode, após investigação apropriada, ser completamente explicado por uma condição médica geral, pelos efeitos diretos de uma substância ou por um comportamento ou experiência culturalmente aceita.
E. O sintoma ou déficit causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo, ou indica avaliação médica.
F. O sintoma ou déficit não se limita a dor ou disfunção sexual, não ocorre exclusivamente durante o curso de um transtorno de somatização, nem é mais bem explicado por outro transtorno mental.
 Especificar tipo de sintoma ou déficit:
 com sintoma ou déficit motor
 com sintoma ou déficit sensorial
 com ataques ou convulsões
 com quadro misto


Tabela 5: Critérios diagnósticos para transtorno dissociativo (DSM-IV, APA, 2000)

Amnésia dissociativa
A.               A perturbação predominante consiste em um ou mais episódios de incapacidade de recordar informações pessoais importantes, em geral de natureza traumática ou estressante, demasiadamente extensa para ser explicada pelo esquecimento normal.
B.               A perturbação não ocorre exclusivamente durante o curso de transtorno dissociativo de identidade, fuga dissociativa, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de estresse agudo, ou transtorno de somatização, nem se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p.ex., droga de abuso ou medicamento), de um problema neurológico ou de outra condição médica geral.
C.              Os sintomas causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Fuga dissociativa
A.               A perturbação predominante é uma viagem súbita e inesperada para longe de casa ou do local costumeiro de trabalho do indivíduo, com incapacidade em recordar o próprio passado.
B.               Confusão acerca da identidade pessoal ou adoção (parcial ou completa) de uma nova identidade.
C.              A perturbação não ocorre exclusivamente durante o curso de transtorno dissociativo de identidade, nem se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p.ex., droga de abuso ou medicamento) ou de outra condição médica geral (p.ex., epilepsia do lobo temporal).
D.              Os sintomas causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Transtorno dissociativo de identidade
A.               Presença de duas ou mais identidades ou estados de personalidade distintos (cada qual com seu próprio padrão relativamente persistente de percepção, relacionamento e pensamento acerca do ambiente e de si mesmo).
B.               No mínimo duas dessas identidades ou estados de personalidade assumem recorrentemente o controle do comportamento do indivíduo.
C.              Incapacidade em recordar informação pessoal importante, demasiadamente extensa parar ser explicada pelo esquecimento comum.
D.              A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p.ex., apagões ou comportamento caótico durante intoxicação com álcool) ou de uma condição médica geral (p.ex., crises parciais complexas).
Transtorno de despersonalização
A.               Experiências persistentes ou recorrentes de sentir-se desligado de si próprio e de como se o indivíduo fosse um observador externo dos próprios processos mentais ou do próprio corpo (p.ex., sentir-se como em um sonho).
B.               Durante a experiência de despersonalização, o teste de realidade permanece intacto.
C.              A despersonalização causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
D.              A experiência de despersonalização não ocorre exclusivamente durante o curso de outro transtorno mental, como esquizofrenia, transtorno de pânico, transtorno de estresse agudo ou outro transtorno dissociativo, nem se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p.ex., droga de abuso ou medicamento) ou de outra condição médica geral (p.ex., epilepsia do lobo temporal).


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